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26 de março de 2010

A Calvaria e o Dodô

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Cientistas usam o método científico como lentes para enxergar o funcionamento do mundo. Muitos tentam construir modelos elegantes para explicar o que observam. A busca da beleza no universo tem seus perigos: uma hipótese bonita de nada vale se fatos não a sustentarem. O problema é que todo cientista é um tanto narcisista e muitos acham que suas histórias valem mais do que a realidade.

Um clássico exemplo disso pode ser observado em um artigo publicado por Stanley Temple em 1977, na prestigiosa revista Science. No artigo, Temple descreve a desesperadora situação da árvore Calvaria major, cuja população nas ilahs Maurício era de apenas 13 indivíduos. As ilhas Maurício são famosas por ter sido o habitat do Dodô, extinto em 1680.
Temple diz, em seu artigo, que os poucos indivíduos restantes da Calvaria têm mais de 300 anos, ou seja, neste período nenhum indivíduo de Calvaria se estabeleceu na ilha. A explicação estaria no fato da semente do fruto ter uma casca muito grossa, de mais de 1.5 cm, que não estaria permitindo a germinação de novas Calvaria. De acordo com Temple, a semente era ingerida por ninguém menos que o Dodô, cuja poderosa moela desgastaria a sua casca, permitindo a germinação da Calvaria junto com suas fezes. Assim, Temple hipotetizou que a extinção do Dodô, impediu a germinação de novas sementes da Calvaria, condenando mais uma espécie à extinção.
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Um experimento de Temple até mostrou que a ingestão de 17 sementes por perus resultava em três sementes que se germinavam após a ação do sistema digestório da grande ave. As primeiras, segundo Temple, a germinar em 300 anos.
A interação da Calvaria com o Dodô mostrava como o destino de duas espécies pode estar intimamente ligado e como deveríamos ter muito cuidado ao alterar o nosso ambiente. Esta história foi contada inúmeras vezes por ambientalistas tentando educar crianças e adultos pelo mundo.
*pausa dramática*
Só que os fatos não sustentam a bela hipótese de Temple...
... para começar, trabalhos publicados em 1941 e 1946 mostraram que as sementes da Calvaria conseguem germinar mesmo sem nenhuma abrasão na sua casca pois ela simplesmente racha após um tempo no solo. Sem contar que censos populacionais feitos em 1991 revelaram que há centenas de Calvaria de todas as idades nas ilhas Maurício. Para ser justo, a população é ainda bastante reduzida, principalmente por causa do desmatamento e a introdução de espécies como porcos e veados nas ilhas.
Mais: Temple alimentou perus com 17 sementes e viu que 3 germinaram depois. Só que ele não pegou 17 sementes e as colocou no solo para ver quantas germinavam sozinhas. Ou seja, não é possível saber se o sistema digestório dos perus realmente ajudaram a germinação das sementes! Temple nem tentou medir o quanto da casca das sementes era retirada após a passagem pelos perus. A propósito, não sabemos se dodôs comiam sementes da Calvaria. Como estão extintos faz séculos, os hábitos alimentares do galinhão são um mistério. Sem contar que perus esmagaram cerca de 40% das sementes mas dodôs eram de três vezes maiores!
Temple era um ornitólogo que elaborou uma hipótese maravilhosa onde uma árvore era tão dependente de uma ave que, quando ela foi extinta, a árvore começou a desaparecer. A hipótese mostrava de forma indiscutível a interrelação de duas espécies, algo já na moda em 1977. Temple provavelmente sabia que os fatos não confirmavam a sua hipótese e tentou publicá-la assim mesmo, sendo muito bem sucedido. Se ele teve sucesso na época, a história não foi tão gentil e hoje sabemos que, mesmo bela, a hipótese não se sutenta.
A história de Temple mostra que nem sempre devemos nos apaixonar por nossas hipóteses: ao tentar alcançá-las, nem percebemos quando a dura realidade acaba nos afogando.

Fontes:
Temple SA (1977). Plant-Animal Mutualism: Coevolution with Dodo Leads to Near Extinction of Plant. Science (New York, N.Y.), 197 (4306), 885-886 PMID: 17730171
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Créditos: http://scienceblogs.com.br/brontossauros/

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