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12 de maio de 2010

Fissura na Grafia

Sírio Possenti, linguista da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), concedeu por telefone uma entrevista excelente para a reportagem de capa do caderno Informática de 12 de maio.

Confira:

FISSURA NA GRAFIA
Acho que há uma fissura excessiva com o problema de grafia, de maneira geral. Acho que ela se deve ao fato de que é a única coisa, a rigor, que a maioria das pessoas sabe corrigir. Se elas leem um texto e veem um cê-cedilha que não deveria estar ali, dizem: “Esse texto está errado”. Mas elas não se dão conta, frequentemente, se o texto é incoerente, contraditório, incompleto, se o argumento é uma droga. A maioria não percebe.
SASHA
Um monte de gente corrigiu o “s” dela [em 2009, a filha de Xuxa escreveu “cena” com “s” no Twitter] e ninguém pensou, por exemplo, “como eu sou um idiota por seguir a Xuxa no Twitter”. [O sujeito] pensou que fosse um gênio porque tinha descoberto um erro de grafia, mas não se deu conta de que é um idiota porque a profissão dele é seguir a Xuxa no Twitter.
SAPATO MAL AMARRADO
Acho que há um equívoco brutal de abordagem dos fenômenos da linguagem, considerando que a grafia é uma coisa hiperimportante. Isso pega de cima para baixo, da intelectualidade brasileira até o povão. E acho que é um equívoco, porque deveria ficar claro para todo mundo que a ortografia, a rigor, nem é língua, é uma lei. Evidentemente, não tem como dizer que não é um erro, até porque está definido em lei, mas é um erro que não tem lá tanta importância. Devia ser visto como uma coisinha qualquer, como um sapato um pouco mal amarrado. Não devia merecer tanto interesse.
ABREVIATURAS
Sobre as abreviaturas, eu tenho dito coisas que acho óbvias. Uma é que elas sempre existiram em maior ou menor grau, e isso depende muito do contexto. Se você está anotando aula, você abrevia mais do que se você está escrevendo para um jornal. Se você está no computador, escrevendo um e-mail para o seu chefe, você abrevia mais do que se você escreve um livro. Não é que isso seja determinado, mas isso está associado ao contexto e ao tipo de suporte que você usa. E também ao tipo de interlocução. Por exemplo, usar a abreviatura em chat, para adolescentes, é um traço de identidade. Se eles escrevem tudo certinho, se sentirão como se fossem velhos. É um problema que, digamos, passa por vários lugares, mas não deveria ser visto apenas como um erro e muito menos como destruição da língua, porque isso seria achar que a grafia é a língua. O que seria uma grossa bobagem.
CLASSIFICADOS
Sabe qual é o argumento mais interessante sobre isso? Pegue um jornal como a Folha ou o Estadão, olhe os pequenos classificados e veja como eles estão escritos. Aí você vai ter uma ideia muito clara da relação entre o tipo de grafia e o tipo de texto que se está escrevendo. Ninguém usa as abreviaturas dos pequenos anúncios na primeira página ou no editorial. Mas também ninguém usa a grafia do editorial nos pequenos anúncios.
GÊNEROS E SUPORTES
Mal comparando, esses suportes eletrônicos, como celular para mandar recadinhos, ou Messenger, chat etc. são lugares nos quais as pessoas escrevem de uma maneira não pessoal, porque ela é muito uniforme entre os usuários, mas de uma maneira muito peculiar e associada exatamente a esses suportes e aos gêneros que se escrevem nesses suportes. Isso não é nem uma ameaça à língua —a língua nem fica sabendo disso— e muito provavelmente não é uma ameaça nem à escolaridade daqueles que fazem isso, até porque nada garante que quem escreve dessa forma no Twitter escreve assim quando escreve em outro lugar. Para dizer isso, seria necessário fazer uma pesquisa para ver se é verdade. Os professores, em geral, dizem que sim, que têm medo, mas os alunos, quando são entrevistados sobre isso, têm clara consciência de que uma coisa é uma coisa e de que outra coisa é outra coisa.
Escrito por Rafael Capanema - FolhaOnline: íntegra da entrevista com o linguista Sírio Possenti

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